19 de fevereiro de 2015

Um Texto de Petrônio


 
 
UM TEXTO DE PETRÔNIO
O texto a seguir não é de minha autoria, como o título desta publicação sugere. É um trecho da obra “Satiricon”, escrita no século I d.C. por Petronius, que é considerado um dos primeiros romances realistas da literatura ocidental. Resolvi transcrevê-lo porque, além de parecer coerente com a realidade de hoje, encaixa-se bem no propósito deste blog, que é o livre-pensar.
Trata-se de um diálogo entre Encólpio, personagem que narra a estória, e seu mais novo companheiro Eumolpo, que no enredo é um poeta rejeitado. Segue o trecho:
“... Perguntei a Eumolpo a que ele atribuía a decadência das belas-artes em nosso século.
“— O amor à riqueza — disse-me ele — produziu esta mudança. Na época de nossos ancestrais, quando só ao mérito se prestavam honrarias, floresceram as belas-artes, e os homens disputavam entre si a glória de transmitir aos séculos seguintes todas as descobertas úteis. Então, viu-se Demócrito, o Hércules da ciência, destilar o suco de todas as plantas conhecidas, e passar a vida inteira a fazer experiências para conhecer a fundo as diversas propriedades dos minerais e dos vegetais. Eudóxio envelheceu no cume de uma montanha, para observar mais de perto os movimentos do céu e dos astros; e Crisipo tomou três vezes heléboro, para purificar o espírito e torna-lo mais apto a novas descobertas. Para retornar às artes plásticas, lembremos que Lisipo morreu de fome, definhando para aperfeiçoar os contornos de uma única estátua; e Míron, que fez, por assim dizer, passar para o bronze a alma humana e o instinto dos animais, não encontrou ninguém que quisesse aceitar sua herança. Enquanto isso, nós, que chafurdamos na devassidão e na bebedeira, não ousamos sequer nos elevar ao conhecimento das artes inventadas antes de nós. Soberbos detratores da Antiguidade, professamos apenas a ciência do vício, da qual nos fornecem simultaneamente o exemplo e a lição. Que aconteceu com a dialética, a astronomia, a moral, essa rota segura de sabedoria? Quem, hoje, vemos entrar num templo para atingir a perfeição da eloquência, ou para descobrir as fontes obscuras da filosofia? Não se pede mais aos deuses nem mesmo a saúde. Segue essa turba que sobe ao Capitólio: antes mesmo de chegar ao limiar do templo, um promete uma oferenda se tiver a felicidade de enterrar um parente rico; o outro, se descobrir um tesouro; um terceiro, se conseguir, antes da morte, juntar trinta milhões de sestércios. Mas que digo eu? Não tens visto frequentemente o próprio Senado, árbitro da honra e da justiça, votar uma verba de mil marcos de ouro para Júpiter? Não parece encorajar a cupidez, tratando assim, a preço de dinheiro, de tornar o céu favorável? Não te espantes, pois, com a decadência das artes, pois tanto os deuses como os homens acham mais encanto num lingote de ouro do que em todas as obras-primas de Apeles, de Fídias, e de todos os outros ‘pobres tolos gregos’, como eles os chamam...”
Petrônio, o autor do texto acima, morreu no ano 66 d.C.
Alguma semelhança com o mundo atual?