27 de janeiro de 2014

O Reino da Mediocridade (II)


 
O REINO DA MEDIOCRIDADE (II)
 
Há tempos venho tentando escrever este segundo ‘Reino da Mediocridade’ sem, entretanto, publicá-lo. Pelo menos desde julho, quando publiquei o primeiro.
Por quê?
Porque a cada vez que eu imaginava  um exemplo absurdo de mediocridade sobre o qual eu poderia escrever, mal eu iniciava a redação e logo em seguida aparecia um outro, o que me levava a tentar incluí-lo também; só que antes que eu terminasse de incluir esse outro aparecia outro, e depois outro, e outro, e outro... Comecei a perceber que o assunto era inesgotável, fecundamente inesgotável, e que se eu fosse incluir todos eles num único texto, com uma redação bem elaborada como no primeiro, não terminaria nunca.
Resolvi publicá-lo hoje, com todos os tópicos (sem nada de rebuscado), porque anteontem (dia 25 de janeiro de 2014) a mediocridade superou-se no que havia (ou há) de mais inimaginável.
O cantor  e compositor Renato Teixeira (http://www.renatoteixeira.com.br/site/) deu um show no Espaço Vívere Eventi (http://www.vivereeventi.com.br/), aqui em Araçatuba, organizado pelo SESCOOP – Serviço Nacional de Aprendizagem do Cooperativismo no Estado de São Paulo (http://www.ocb.org.br/site/sescoop/).
E famílias inteiras tiveram que voltar pra casa porque foram impedidas de entrar devido a um alvará que proibia a permanência, no recinto, de menores de 12 anos de idade, mesmo estando na companhia dos próprios pais! O alvará em questão, requerido pelo representante da SESCOOP, Sr. Jeferson Pasqualoto, assinado pelo Exmo. Sr. Dr. Adeilson Fereira Negri, e datado de 24 de janeiro de 2014 provocou uma série de situações constrangedoras. Cenas de revolta, decepção e tristeza (presenciei várias delas nos quinze minutos que fiquei do lado de fora do recinto, atônito, tentando entender as razões de tal decisão) eclodiam aos montes em meio ao absurdo insólito da situação. Casais desconcertados com suas crianças de colo, pais cabisbaixos tentando explicar o que acontecia a seus filhos pequenos, crianças chorando sem saber por que estavam sendo impedidas de entrar...! Todos com os ingressos nas mãos tentando entender o que ocorria... Inclusive gente que já fez (e faz) muito mais pela vida cultural da cidade do que qualquer um dos organizadores do evento! Gente de bem! Tanto que não presenciei nenhum gesto ou atitude de insubordinação, desafio ou desacato. Gente culta, gente de bem, consciente tanto dos seus direitos quanto de sua impotência perante o poder público! Entristecida, revoltada, enraivecida, mas sem reagir com ignorância à ignorância da qual estavam sendo vítimas!
E todos impotentes, de mãos atadas...! Era a lei...! Era o ‘todo poderoso’ aparelho de Estado atropelando o cidadão de bem com toda a sua mediocridade.
E não se trata só de questionar se essa decisão foi tomada por iniciativa do requerente do alvará ou do Sr. Juiz que o emitiu. É mais do que simplesmente culpar alguém. Está além disso.
Primeiro, quais razões teriam levado alguém a proibir a permanência de menores de 12 anos no recinto. Não consigo pensar sequer em uma! Um espetáculo musical, sem nada de ofensivo ou degradante, muito ao contrário, com um cantor nacionalmente reconhecido, de boa música sertaneja de raiz (e não essa ‘breguice’ medíocre de ‘agroboys’),  num show respeitável e respeitoso de menos de duas horas de duração...! E num ambiente onde não havia sequer um único bar vendendo nada, nem água! Por que impedir o acesso de crianças a esse tipo de espetáculo? Principalmente se considerarmos o que acontece anualmente na exposição agropecuária de Araçatuba, onde, por diversas vezes ao longo de mais de uma semana, artistas medíocres vomitam indiscriminadamente (inclusive sobre crianças menores de 12 anos) seu repertório vulgar em apresentações também medíocres (e às vezes ainda permeadas de obscenidades em palavras, gestos e coreografias), e isso num ambiente caótico onde se pode, inclusive, consumir bebidas alcoólicas a cada vinte ou trinta metros!
Isso pode?
Pode, vivemos no Reino da Mediocridade. E a mediocridade é tanta que, depois de publicar este texto, certamente algum imbecil vai propor alguma restrição à permanência de crianças na exposição agropecuária.
Segundo, e independentemente das razões que levaram a tal proibição (se é que existem), o que se deve considerar, ainda  e talvez acima de tudo, é o papel do Estado, ainda que num nível municipal, na vida do cidadão que normalmente só quer levar a vida em paz sem ser atrapalhado em seu cotidiano já tão minuciosamente controlado e limitado. A coisa toda foi de um absurdo imensurável, mas ninguém podia fazer nada, absolutamente nada! Não havia a quem recorrer (polícia, tribunal, ONG, nada), pois tratava-se de uma decisão judicial já estabelecida! Não havia o que fazer, era fato consumado, qualquer atitude contestatória se transformaria depois num imenso problema judicial, acarretaria ‘as penas da lei’, como manifesto no alvará; essas mesmas ‘penas da lei’ que, como se vê nesse episódio, não foram feitas para beneficiar o cidadão de bem que, mesmo sendo pacato, acaba sendo vítima tanto dela quanto do poder que a faz ou aplica. Pais foram mutilados em seus direitos de proporcionarem a seus filhos um espetáculo de extrema riqueza cultural, e que poderia enriquecer, e muito, a formação musical dessas mesmas crianças que foram impedidas de entrar; e por parte do mesmo poder público que deveria garantir esse direito; e numa cidade onde eventos culturais de qualidade nacional são escassos; e num evento que se propunha a ‘estimular a vida cultural da cidade’ (conforme dito ao microfone pelos organizadores do evento)...
A situação me pareceu, de fato, muito revoltante (tanto que estou escrevendo sobre ela).
Enfim, resolvi publicar este “Reino da Mediocridade II” no sopetão, sem nada de rebuscado, como já escrevi antes nos primeiros parágrafos deste texto; porque se eu for incluir todos os absurdos medíocres que presencio vou passar o resto da vida só escrevendo, sem nunca terminar. É muita coisa, esse episódio do dia 25 foi só a gota d’água, o empurrão final.
Segue abaixo os rascunhos de tudo o que eu já havia escrito e pensava publicar de forma mais adequada em termos literários, sem muita preocupação estética.
No Reino da Mediocridade...
Os jovens podiam votar já a partir dos 16 anos de idade. Não podiam dirigir um carro, pois a carteira de habilitação só podia ser requisitada a partir dos 18 anos; mas podiam votar. Ou seja, podiam dirigir o país mas não podiam dirigir um automóvel.
Menores de 18 ano também não podiam jogar bilhar, apesar de poderem jogar videogames onde tinham condição de portar armas de todos os tipos, atirar à vontade, arrancar cabeças, explodir pessoas, roubar carros, atropelar velhinhas e crianças, espancar, mutilar... Ou seja, todas as atrocidades que violentam a civilidade e caracterizam a barbárie eram permitidas quando se tratava de um videogame, mas jogar bilhar não se podia, nem na companhia dos próprios pais; pois provavelmente os legisladores consideravam que jogar bilhar poderia, de alguma forma, corromper os jovens em seu caráter.
Faziam leis, ah, como faziam! Adoravam isso! Mesmo as mais imbecis! E os súditos, sempre coniventes, apoiavam e pediam mais! Nunca se fartavam de mediocridade! Alguns legisladores até faziam campanha eleitoral alardeando que eram os que mais projetos de lei apresentavam! Se essas leis eram ou não fundamentadas no bom-senso era irrelevante, pois era o Reino da Mediocridade. O que importava era a quantidade de leis.
Não gostavam de cigarros, então o proibiram, mas somente em ambientes fechados. E disso resultou que os fumantes tinham que se dirigir aos bosques, às praças, aos ambientes ditos ‘abertos’ para poderem fumar. Criou-se, assim, uma situação inusitada: bares e boates estavam com ar puríssimo, dignos de uma UTI de hospital de primeiro mundo; e os bosques e as praças (onde pessoas sensatas poderiam esperar respirar ar puro) exalavam fumaça, estavam poluídos. E isso sem falar na liberdade de escolha que aleijaram, impedir as pessoas de escolherem se preferiam abrir mão da fumaça ou do ar puro (transformaram ar puro em opção, não em direito).
Faziam leis. Porque leis são feitas para soterrar argumentos, já que argumentos convencem e leis são feitas para obrigar.
Era tudo muito estranho.
Criaram um estado laico, ou seja, desvinculado da religião. Mas o dinheiro que emitiam e que circulava livremente continha a inscrição ‘Deus Seja Louvado’; e sua Constituição fora promulgada ‘em nome de Deus’.
Era estranho.
A ‘propina’ era legalizada com vários outros nomes diferentes e imposta aos súditos. Você, enquanto súdito, tinha que pagar a eles para poder comprar alguma coisa com o seu dinheiro (porque eles, e só eles, os sábios legisladores da Corte, tinham poder para permitir isso); mas depois disso você, o súdito, que havia comprado um bem com o seu dinheiro, ainda tinha que continuar pagando a eles pelo que você já tinha pago (para os menos entendedores, IPTU, IPVA, IR e outras siglas mais que eles inventaram para não falar ‘propina’, pois propina era proibido); ou seja, você tinha que pagar para manter o que você já havia adquirido.
Educação era alvo de legislação, não de argumentação. Parece que não queriam que argumentassem; bastava ceder, não compreender.
Precisavam que se obedecesse, nada mais. E ainda inventaram uma série de leis para se protegerem da argumentação (tinha algo a ver com ‘desacato à autoridade’).
Era o único reino do mundo no qual se considerava que educação deveria ser objeto mais de legislação que de educação. Afinal de contas, todos tinham por certo que quem fazia as leis era educado, instruído, culto e sábio.
Os outros não. Os outros eram só ‘rebeldes’, terroristas, oportunistas que só queriam aparecer.
Proibiram celulares nas escolas; era mais fácil que convencer. Proibir não era lá o que se pudesse chamar de educar, ainda mais em uma escola; mas era mais fácil e ainda fazia as Cortes melhor vistas pelos súditos esfomeados por leis.
Com certeza estavam tramando também implantar uma lei que obrigasse a levantar a tampa da privada. Afinal de contas, mijar aonde os outros vão se sentar não era considerado boa educação. E as Cortes sabiam que educação só se adquire com leis. Sabiam que educação era algo a ser imposto, não aprendido. E com certeza algum estúpido iria, depois, legislar sobre a obrigação de chacoalhar depois de mijar, querendo ‘aperfeiçoar’ a lei, sem nunca questionar se ela deve ou nãos ser feita ou aplicada. Afinal, era lei, não regra; regra se poderia discutir, negociar e combinar, mas isso não era interessante; colocaria a ‘sabedoria’ das Cortes sob a avaliação de cidadãos ‘oportunistas’.
Tomar uma lata de cerveja e pegar um carro pra dirigir era algo inadmissível, pois afirmavam que quem fazia isso não estaria em condição de conduzir um veículo e ao mesmo tempo estaria assumindo o risco de matar; mas tomar baldes de cerveja e pegar um revólver, ah, esse não fazia  nada de errado que motivasse a elaboração de uma lei desse tipo! Não, claro que não! Quem toma uma cerveja e empunha uma arma está perfeitamente em condições de conduzi-la! E quem empunha uma arma jamais estaria assumindo o risco de matar! Jamais! Estaria, talvez, querendo... Vejamos... Caçar...?
Milhões de súditos foram às ruas protestar contra um aumento de vinte centavos nas passagens de ônibus de uma única cidade do Reino; mas alguns meses depois, nessa mesma cidade, os impostos imobiliários seriam aumentados em mais de 50% e ninguém foi pras ruas; provavelmente já imaginando que iriam todos acabar nas ruas, mesmo, cedo ou tarde, pois não aguentariam pagar esses impostos...
Afinal, esse era o Reino da Mediocridade...