22 de julho de 2013

Bolsa Família

NOTA: este texto foi escrito antes dos acontecimentos nas ruas, para publicação em um jornal local.
 
 
BOLSA FAMÍLIA

No início do mês de maio a TV Cultura, em seu noticiário noturno, expôs uma reportagem sobre o ‘Bolsa Família’, que chegava aos dez anos de existência e “entrava na segunda geração”. Logo em seguida desenvolveu-se um microdebate entre os comentaristas convidados, Ayrton Soares e Marco Antônio Villa, um a favor e outro contra. Achei que os argumentos apresentados refletiam uma controvérsia de âmbito nacional e eu, como talvez grande parte dos telespectadores, me senti tentado a opinar sobre o assunto, sem, entretanto, chegar a interagir com o noticiário via internet, como vários outros faziam.

Mas essa tentação ganhou força depois que vi, numa página do Facebook chamada “A Roça”, a foto de uma enxada golpeando a terra sob a qual se lia a seguinte frase: “Esse era o bolsa família de 40 anos atrás”. A foto, que inclusive compartilhei no meu próprio mural, trazia consigo dezenas de comentários, e os argumentos expostos eram mais ou menos os mesmos que eu havia visto na televisão, tanto contrários quanto favoráveis: que cria assistencialismo, que gera dependência, que acomoda, que “petrifica a miséria” ao invés de reduzi-la; ou então que distribui renda, que tira as crianças das ruas, que incentiva a educação na medida em que estimula as famílias a mandarem seus filhos à escola, afastando-os das drogas, da criminalidade, da violência...

E este último tipo de argumento favorável, bastante frequente, aliás, de que o programa contribui para a educação por exigir das famílias que mantenham os filhos na escola, é o que eu considero mais danoso nisso tudo. Não adianta estar na escola e ter frequência, escola não é reformatório. A escola, que deveria ser um centro de educação e aperfeiçoamento intelectual torna-se meramente um artifício para aquisição de algum benefício imediato, material e palpável; como se a finalidade do Saber fosse fundamentalmente a remuneração; como se o Saber exigisse comprometimento com qualquer coisa que não seja ele próprio enquanto meio de engrandecimento da pessoa humana e, por extensão, da sociedade como um todo. Escola deve ser frequentada por gente que quer instruir-se, deve estar disponível como instrumento de evolução e não como alternativa à ociosidade ou à criminalidade. Nesse caso, melhor seria atrelar o recebimento do ‘benefício’ ao cometimento de qualquer infração ou crime por parte de algum membro da família do beneficiário, incluindo ele próprio, que produzisse cancelamento imediato do mesmo caso tal coisa viesse a ocorrer.

Além do mais, aos que consideram que ‘estar na escola pelo menos ajuda’, penso ser evidente que os mecanismos de avaliação de rendimento são manipulados ou errôneos. Basta observar o que se passa pelo país: estagnação da produtividade, aumento do consumo de drogas, aumento da violência, da criminalidade, da violência da criminalidade... E isso partindo de jovens cada vez mais jovens... Tais coisas acontecendo, enquanto se discute inutilmente a questão da maioridade penal, são, a meu ver, um indicador incontestável de que tudo o que se afirma estar fazendo pela educação é, no mínimo, ineficaz, quando não prejudicial.

E se o programa já está entrando na segunda geração, essa constatação, por si só, já pode ser considerada como indício de que é falho, ineficiente, no mínimo inútil em termos de país ou de sociedade, ainda que seja considerado vantajoso pelos que dele se “beneficiam”; pois se já entra na segunda geração pode-se concluir que a geração precedente não conseguiu (ou não quis) gerar renda, gerar riqueza.

Ou seja, o Bolsa Família pode até tirar o indivíduo da pobreza, mas não tira a pobreza do indivíduo.

E acho até que é por isso que somos um povo pobre. Associamos riqueza a dinheiro, não a trabalho. O que provavelmente nos fará ruminar nossa pobreza por várias e várias gerações, ainda. O que nos fará continuar acreditando que pobreza se resolve somente com dinheiro.


3 de julho de 2013

O Reino da Mediocridade (I)


O REINO DA MEDIOCRIDADE (I)

Era uma vez um Reino.

Um Reino diferente, estranho, onde os súditos podiam escolher seu rei.

Um rei que não era exatamente um rei, já que no Reino não havia nem trono, nem coroa e nem cetro, e já que o rei era escolhido. Mas existiam palácios luxuosos, com cortes submissas e privilegiadas que eram sempre leais ao rei que não era rei, desde que mantivessem seus privilégios.

Tinha tudo para ser um ótimo Reino. Vastos recursos cuja obtenção não exigia muito, basicamente trabalho honesto e dedicado. Ausência quase completa de tragédias ou catástrofes, exceto as que eram provocadas pelo próprio rei e suas cortes, e essas poderiam ser facilmente evitadas já que os súditos podiam escolher seu rei.

Mas a mediocridade imperava e, como a mediocridade não se enxerga como tal e como podia escolher, o rei era medíocre.

Aos súditos faltava educação.

Às cortes faltava nobreza.

Ao rei faltava majestade.

E o rei, tendo chegado ao palácio graças à mediocridade dos súditos, a exaltava.

Gabava-se por não ter se instruído.

Gabava-se por não ter se instruído e, portanto, não se instruía e nem queria instruir.

Gabava-se por falar um único idioma, e não aprendia outro.

Gabava-se por ter obtido um diploma sem ter cursado uma universidade, e universidades passaram a ser meros cartórios a emitir certidões.

Gabava-se por ser proveniente do povo, mas não era mais do povo e não pretendia mais voltar a ser.

Gabava-se por ter feito muito, principalmente gabarolices.

Gabava-se.

Gabava-se, pois gabar-se era atraente à mediocridade.

Só não se gabava da própria mediocridade, pois a mediocridade não se enxerga como tal.

Mas seduzia.

Enfeitiçava.

Alienava.

E como era sustentado pela mediocridade, esforçava-se para perpetuá-la, alimentando-a, fortalecendo-a, poupando-a de tudo que a pudesse prejudicar, mesmo que esse ‘tudo’ fosse apenas uma boa educação, coisa que, aliás, ele podia dirigir, uma vez que era rei.

Mas era medíocre, e não sabia o que era uma boa educação (ou talvez soubesse, e aí a mediocridade seria de caráter). Mas pretendia saber. E era rei. E podia dirigi-la. E podia modelá-la. E podia controlá-la.

Assim sendo, todo o patrimônio intelectual da humanidade angariado com coragem e ousadia, todos os esforços e sacrifícios de séculos e séculos de investigação e de conhecimento, de erudição e de sabedoria, de conquistas e de experiências, foram passados a limpo.

O saber teria que se adaptar à mediocridade.

 Se isso era o melhor para o Reino ou para o futuro do Reino não importava, já que um rei medíocre e cortes medíocres não se interessavam por essas questões; bastava que tudo fosse respaldado pela mediocridade geral.

Aos educandários, então, bastava que gerassem relatórios, não bons cidadão para o Reino ou bons seres humanos para o planeta; que transmitissem diplomas, não conhecimento; que se mirassem nas cortes, não no futuro. Esses educandários eram fiscalizados, sim, e rigorosamente, em aspectos que as cortes consideravam importantes, ou seja, os índices elaborados pelas próprias cortes. Isso excluía a realidade, obviamente, e tal coisa era perceptível no cotidiano do Reino, mas apenas pelos que não eram medíocres. As cortes queriam índices, mas desde que fossem expressos em tabelas, gráficos, grades e números, e não no cotidiano do Reino que, como se via, não melhorava.

Dos mestres, era exigido que adaptassem o saber aos discípulos; e se o saber fosse violentado, ah, isso não importava! O mais fundamental era que os medíocres se sentissem sábios, que tivessem o diploma, como o rei o teve, mas sem os percalços da dedicação e do estudo. Era como se esperassem de um atleta a capacidade de conquistar uma medalha de ouro sem treinamento, como se quisessem mudar os critérios das provas para não ter que exigir nada dos competidores, como se quisessem uma maratona de cem metros porque era o que os maratonistas do Reino conseguiam correr.

Às crianças, bastava que frequentassem os educandários. Que tirassem notas, não proveito. O conhecimento deveria estar nos livros, não nas cabeças. E os livros nas estantes, não para que fossem lidos, mas para quando a mediocridade os quisesse expor. E os diplomas nas paredes, como troféus comprados por atletas que não treinam.

E, em meio a isso tudo, os geniais que se contivessem em seu conhecimento, que se calassem, pois isso poderia desmerecer os medíocres. E que o mestre não exigisse nada que fosse além da capacidade dos discípulos, o que significava na prática perpetuar a incapacidade dos mesmos. Tirar crianças e jovens das ruas era o que importava, pelo menos enquanto fossem crianças e jovens, para não denegrir a imagem do Reino. E pareciam não pensar que crianças e jovens, sempre e continuamente, teriam uma vida fora dos educandários, uma vida cidadã, uma vida de verdade e não uma vida de papel.

Mas nada disso parecia importar.

Apenas alguns súditos, estupefatos ante a tragédia, ousavam querer iluminar... Esperançosos em poder dizer, um dia, que era uma vez um Reino... Dizer que para sempre, uma última vez, que no passado era uma vez, que apenas era uma vez...