14 de outubro de 2014

Um Vilarejo


Um Vilarejo

Sabem o que é conhecer um determinado lugar e se sentir tão parte dele, mas de forma tão íntima, tão intrínseca, e com tamanha sensação de aconchego, que o resto do mundo simplesmente desaparece? Que o resto do mundo simplesmente parece sumir, como se fosse irrelevante, supérfluo...? Ou como se o resto do mundo fosse nada mais que apenas uma fundação, um suporte, um alicerce... Necessário, por certo, já que tudo no mundo tem que ocupar algum lugar no espaço... Mas, ainda assim, uma simples fundação... Ou, então, como se o resto do mundo fosse apenas um entorno, um mero invólucro, uma película fina e finita a envolver um outro mundo, infinito e repentinamente reconhecido como imprescindível e essencial... Como se o resto do mundo fosse apenas um caminho, um espaço a ser percorrido antes de se chegar a esse outro mundo...

Sabem o que é isso...?

Pois bem, há um lugar onde o resto do mundo se torna um mundo alheio, marginal, passa a existir apenas na memória, como se fosse realmente um 'resto de mundo', como se fosse só a lembrança esmaecida de um passado que existiu apenas para permitir a existência do presente no qual estamos... Um lugar despretensioso que poderia ser um lugar qualquer, não fosse ser o que é...

Mas que lugar é esse...? Difícil defini-lo... É difícil descrever o indescritível e eu não sou, certamente, nem o primeiro e nem o único a tentar fazer isso.

É um vilarejo, modelado bem à beira de um encontro entre rio e mar.

Há um rio, portanto. Um rio que corre para o mar, como tantos outros... Mas que não é um rio qualquer, é especial. É um rio que marca a fronteira entre dois mundos distintos, um opressivo e o outro libertador... Um rio que vai desmontando cárceres enquanto é transposto, que põe de lado tudo o que é demais e que, portanto, é desnecessário... Um rio que parece deslizar e não correr, tamanha a suavidade de sua superfície... Um rio que, ao encontrar-se com o mar, parece uma criança curiosa dando as mãos a um adulto, tranquila, pra seguir segura em direção à imensidão dos horizontes a serem descobertos... Um rio que, ao longo do dia, ressalta todas as cores de todas as coisas ao seu redor, e que ao entardecer faz com que tudo, mas tudo mesmo, se torne um melancólico silêncio de tons reluzentes de prata... Um rio que hipnotiza, qualquer que seja a hora... Que convida a navegar com os olhos...

Nesse vilarejo há uma infinidade de cores materializadas em paredes, paredes que parecem existir apenas para embelezar e não para obstruir, delimitar ou proteger... Paredes construídas para abrigar vida, não patrimônio... Paredes que brotam da terra como se fossem flores em meio a uma vegetação exuberante que a tudo emoldura, rio, mar, céu e chão...

Aliás, o chão não é bem chão... Não como se está acostumado a ver ou pisar... Nada do calçamento brutal que violenta a terra apenas para facilitar um fluxo de sei lá o quê que possa ser mais importante que os pés descalços a deslocar a areia... Areia de praia, grossa, que se esparrama pavimentando todas as ruas e avenidas, substituindo a dureza de um asfalto infértil... Areia fofa, macia, morna e envolvente como os abraços e os corações de seus moradores...

Não, não é um lugar apropriado para se fazer negócios, não se trata de um mercado. Que evite tal lugar quem pretenda enriquecer, lá o dinheiro é só o que sempre foi, apenas um instrumento de troca. Lá se fazem amigos, não investimentos. E sob um sol que brilha menos que o sorriso de seus habitantes.

Veículos? Só os que são movidos a patas ou calcanhares. Congestionamento é um par de jumentos disputando a mesma vegetação à beira das cercas de madeira que, cobertas de verde, margeiam as ruas.

O céu noturno...! Ah, o céu...! É o céu colossal dos deuses, o céu primordial do paraíso perdido...! Sem postes iluminados que sequestrem as estrelas e que obriguem a olhar para o chão...! Caminhar pela noite é respirar luar, é envolver-se de penumbra prateada... Deitar-se numa rede é o mesmo que navegar por entre estrelas onde a alma possa brincar, nadar e mergulhar de vez em quando...!

É realmente difícil descrever um lugar indescritível... Um lugar de onde sequer se recorda da existência do resto do mundo... De onde o resto do mundo parece distante, perdido... E de onde, talvez, só me seja possível afirmar que o resto do mundo, de lá, parece tornar-se realmente apenas um ‘resto de mundo’, um meio para se chegar a um fim e não um fim em si... Sequer desperta saudade... E eu não sei bem ao certo nem mesmo o que seria esse ‘resto do mundo’, visto de lá...  Mas posso afirmar, com certeza, que todo o resto do mundo começa onde termina Caraíva...