22 de julho de 2013

Bolsa Família

NOTA: este texto foi escrito antes dos acontecimentos nas ruas, para publicação em um jornal local.
 
 
BOLSA FAMÍLIA

No início do mês de maio a TV Cultura, em seu noticiário noturno, expôs uma reportagem sobre o ‘Bolsa Família’, que chegava aos dez anos de existência e “entrava na segunda geração”. Logo em seguida desenvolveu-se um microdebate entre os comentaristas convidados, Ayrton Soares e Marco Antônio Villa, um a favor e outro contra. Achei que os argumentos apresentados refletiam uma controvérsia de âmbito nacional e eu, como talvez grande parte dos telespectadores, me senti tentado a opinar sobre o assunto, sem, entretanto, chegar a interagir com o noticiário via internet, como vários outros faziam.

Mas essa tentação ganhou força depois que vi, numa página do Facebook chamada “A Roça”, a foto de uma enxada golpeando a terra sob a qual se lia a seguinte frase: “Esse era o bolsa família de 40 anos atrás”. A foto, que inclusive compartilhei no meu próprio mural, trazia consigo dezenas de comentários, e os argumentos expostos eram mais ou menos os mesmos que eu havia visto na televisão, tanto contrários quanto favoráveis: que cria assistencialismo, que gera dependência, que acomoda, que “petrifica a miséria” ao invés de reduzi-la; ou então que distribui renda, que tira as crianças das ruas, que incentiva a educação na medida em que estimula as famílias a mandarem seus filhos à escola, afastando-os das drogas, da criminalidade, da violência...

E este último tipo de argumento favorável, bastante frequente, aliás, de que o programa contribui para a educação por exigir das famílias que mantenham os filhos na escola, é o que eu considero mais danoso nisso tudo. Não adianta estar na escola e ter frequência, escola não é reformatório. A escola, que deveria ser um centro de educação e aperfeiçoamento intelectual torna-se meramente um artifício para aquisição de algum benefício imediato, material e palpável; como se a finalidade do Saber fosse fundamentalmente a remuneração; como se o Saber exigisse comprometimento com qualquer coisa que não seja ele próprio enquanto meio de engrandecimento da pessoa humana e, por extensão, da sociedade como um todo. Escola deve ser frequentada por gente que quer instruir-se, deve estar disponível como instrumento de evolução e não como alternativa à ociosidade ou à criminalidade. Nesse caso, melhor seria atrelar o recebimento do ‘benefício’ ao cometimento de qualquer infração ou crime por parte de algum membro da família do beneficiário, incluindo ele próprio, que produzisse cancelamento imediato do mesmo caso tal coisa viesse a ocorrer.

Além do mais, aos que consideram que ‘estar na escola pelo menos ajuda’, penso ser evidente que os mecanismos de avaliação de rendimento são manipulados ou errôneos. Basta observar o que se passa pelo país: estagnação da produtividade, aumento do consumo de drogas, aumento da violência, da criminalidade, da violência da criminalidade... E isso partindo de jovens cada vez mais jovens... Tais coisas acontecendo, enquanto se discute inutilmente a questão da maioridade penal, são, a meu ver, um indicador incontestável de que tudo o que se afirma estar fazendo pela educação é, no mínimo, ineficaz, quando não prejudicial.

E se o programa já está entrando na segunda geração, essa constatação, por si só, já pode ser considerada como indício de que é falho, ineficiente, no mínimo inútil em termos de país ou de sociedade, ainda que seja considerado vantajoso pelos que dele se “beneficiam”; pois se já entra na segunda geração pode-se concluir que a geração precedente não conseguiu (ou não quis) gerar renda, gerar riqueza.

Ou seja, o Bolsa Família pode até tirar o indivíduo da pobreza, mas não tira a pobreza do indivíduo.

E acho até que é por isso que somos um povo pobre. Associamos riqueza a dinheiro, não a trabalho. O que provavelmente nos fará ruminar nossa pobreza por várias e várias gerações, ainda. O que nos fará continuar acreditando que pobreza se resolve somente com dinheiro.


3 de julho de 2013

O Reino da Mediocridade (I)


O REINO DA MEDIOCRIDADE (I)

Era uma vez um Reino.

Um Reino diferente, estranho, onde os súditos podiam escolher seu rei.

Um rei que não era exatamente um rei, já que no Reino não havia nem trono, nem coroa e nem cetro, e já que o rei era escolhido. Mas existiam palácios luxuosos, com cortes submissas e privilegiadas que eram sempre leais ao rei que não era rei, desde que mantivessem seus privilégios.

Tinha tudo para ser um ótimo Reino. Vastos recursos cuja obtenção não exigia muito, basicamente trabalho honesto e dedicado. Ausência quase completa de tragédias ou catástrofes, exceto as que eram provocadas pelo próprio rei e suas cortes, e essas poderiam ser facilmente evitadas já que os súditos podiam escolher seu rei.

Mas a mediocridade imperava e, como a mediocridade não se enxerga como tal e como podia escolher, o rei era medíocre.

Aos súditos faltava educação.

Às cortes faltava nobreza.

Ao rei faltava majestade.

E o rei, tendo chegado ao palácio graças à mediocridade dos súditos, a exaltava.

Gabava-se por não ter se instruído.

Gabava-se por não ter se instruído e, portanto, não se instruía e nem queria instruir.

Gabava-se por falar um único idioma, e não aprendia outro.

Gabava-se por ter obtido um diploma sem ter cursado uma universidade, e universidades passaram a ser meros cartórios a emitir certidões.

Gabava-se por ser proveniente do povo, mas não era mais do povo e não pretendia mais voltar a ser.

Gabava-se por ter feito muito, principalmente gabarolices.

Gabava-se.

Gabava-se, pois gabar-se era atraente à mediocridade.

Só não se gabava da própria mediocridade, pois a mediocridade não se enxerga como tal.

Mas seduzia.

Enfeitiçava.

Alienava.

E como era sustentado pela mediocridade, esforçava-se para perpetuá-la, alimentando-a, fortalecendo-a, poupando-a de tudo que a pudesse prejudicar, mesmo que esse ‘tudo’ fosse apenas uma boa educação, coisa que, aliás, ele podia dirigir, uma vez que era rei.

Mas era medíocre, e não sabia o que era uma boa educação (ou talvez soubesse, e aí a mediocridade seria de caráter). Mas pretendia saber. E era rei. E podia dirigi-la. E podia modelá-la. E podia controlá-la.

Assim sendo, todo o patrimônio intelectual da humanidade angariado com coragem e ousadia, todos os esforços e sacrifícios de séculos e séculos de investigação e de conhecimento, de erudição e de sabedoria, de conquistas e de experiências, foram passados a limpo.

O saber teria que se adaptar à mediocridade.

 Se isso era o melhor para o Reino ou para o futuro do Reino não importava, já que um rei medíocre e cortes medíocres não se interessavam por essas questões; bastava que tudo fosse respaldado pela mediocridade geral.

Aos educandários, então, bastava que gerassem relatórios, não bons cidadão para o Reino ou bons seres humanos para o planeta; que transmitissem diplomas, não conhecimento; que se mirassem nas cortes, não no futuro. Esses educandários eram fiscalizados, sim, e rigorosamente, em aspectos que as cortes consideravam importantes, ou seja, os índices elaborados pelas próprias cortes. Isso excluía a realidade, obviamente, e tal coisa era perceptível no cotidiano do Reino, mas apenas pelos que não eram medíocres. As cortes queriam índices, mas desde que fossem expressos em tabelas, gráficos, grades e números, e não no cotidiano do Reino que, como se via, não melhorava.

Dos mestres, era exigido que adaptassem o saber aos discípulos; e se o saber fosse violentado, ah, isso não importava! O mais fundamental era que os medíocres se sentissem sábios, que tivessem o diploma, como o rei o teve, mas sem os percalços da dedicação e do estudo. Era como se esperassem de um atleta a capacidade de conquistar uma medalha de ouro sem treinamento, como se quisessem mudar os critérios das provas para não ter que exigir nada dos competidores, como se quisessem uma maratona de cem metros porque era o que os maratonistas do Reino conseguiam correr.

Às crianças, bastava que frequentassem os educandários. Que tirassem notas, não proveito. O conhecimento deveria estar nos livros, não nas cabeças. E os livros nas estantes, não para que fossem lidos, mas para quando a mediocridade os quisesse expor. E os diplomas nas paredes, como troféus comprados por atletas que não treinam.

E, em meio a isso tudo, os geniais que se contivessem em seu conhecimento, que se calassem, pois isso poderia desmerecer os medíocres. E que o mestre não exigisse nada que fosse além da capacidade dos discípulos, o que significava na prática perpetuar a incapacidade dos mesmos. Tirar crianças e jovens das ruas era o que importava, pelo menos enquanto fossem crianças e jovens, para não denegrir a imagem do Reino. E pareciam não pensar que crianças e jovens, sempre e continuamente, teriam uma vida fora dos educandários, uma vida cidadã, uma vida de verdade e não uma vida de papel.

Mas nada disso parecia importar.

Apenas alguns súditos, estupefatos ante a tragédia, ousavam querer iluminar... Esperançosos em poder dizer, um dia, que era uma vez um Reino... Dizer que para sempre, uma última vez, que no passado era uma vez, que apenas era uma vez...

 

 

 

27 de junho de 2013

OS VINTE CENTAVOS MAIS CAROS DO MUNDO (III)


OS VINTE CENTAVOS MAIS CAROS DO MUNDO (III)

Tenho algo a dizer, ainda. E muito ainda direi, com certeza.

Essas bestas na política acho que não estão entendendo (ou não estão querendo entender) o recado das ruas. Ou estão entendendo muito bem e planejando como livrar a própria cara e ao mesmo tempo confundir a população.

Ou então sou eu, que já fui pra rua, que não estou entendendo nada; portanto, perdoem-me os leitores se, em alguns trechos, uso o pronome ‘nós’ e não ‘eu’ ao escrever, pois na minha opinião o que digo não reflete exclusivamente meu ponto de vista, é a expressão da vontade da maioria. Mas talvez a besta seja eu, por isso vou começar de novo, reiterando meu pedido de perdão se esse ‘nós’ não for cabível:

Essas bestas na política acho que não estão entendendo (ou não estão querendo entender) o recado das ruas. Ou estão entendendo muito bem e planejando ardilosamente como livrar a própria cara e ao mesmo tempo confundir a população.

Imagino que a reforma política que queremos é MORAL, mais do que institucional, infinitamente mais. Não mostramos isso o bastante? Nosso grito não foi alto o suficiente?

Falam em plebiscito para uma reforma constitucional. Mas quem é que foi pra rua protestar contra a Constituição? Quem é que está assim tão insatisfeito com a atual a ponto de querer que essas pessoas que compõem o Congresso (ou os atuais partidos) façam uma nova?

Estamos criticando a classe política como um todo, a ponto de sequer querermos envolvimento partidário nas passeatas, e vamos querer agora delegar a essa mesma classe política o poder de alterar nossa Constituição?

É isso que queremos?

Ou queremos decência, honestidade, integridade, comprometimento e dedicação, por parte de qualquer um, quem quer que seja, que esteja na política? O que queremos não é melhorar o país? Não estamos, todos, querendo representantes nos quais possamos confiar, antes que se faça algo tão importante quanto uma nova Constituição?

Queremos mesmo uma nova Constituição?

É isso que queremos?

Ou é isso que eles querem?

Talvez seja.

Confundir, burocratizar, absorver o que não pertence a eles, colocar as ruas numa tribuna, mas para transformar reivindicações em catálogos, para que o povo volte a ser artigo de consumo. Fazer com que nos percamos nos meandros da burocracia, percorrendo escrivaninhas e gavetas como papel e não como povo. Para que recuperem o controle. Para que não estejamos à altura do que estará sendo discutido entre eles. Para que nos sintamos ignorantes. Para que dependamos da opinião de especialistas ou da mídia. Para que percamos o que criamos.

Queremos mesmo que essa classe política que está aí, que só está agindo porque está sob pressão e não qual não confiamos, faça outra Constituição?

Não, não acho que seja isso.

Vamos primeiro moralizar os políticos e os partidos, e isso nas ruas e no voto, não nos gabinetes.

Depois pensaremos em alterar as instituições.

 

 

 

26 de junho de 2013

OS VINTE CENTAVOS MAIS CAROS DO MUNDO (II)


OS VINTE CENTAVOS MAIS CAROS DO MUNDO (II)

Por que são os vinte centavos mais caros do mundo?

Porque com eles plantamos milhões de sementes, e algum fruto há de brotar.

Porque com eles financiamos projetos aos milhões, e nos tornamos mais ricos.

Porque com eles adquirimos ideias.

Porque com eles resgatamos a decência, que nos fará melhores em nós mesmos.

Porque com eles adquirimos consciência, que não tem mais preço nem devolução.

Porque conquistamos um país inteiro. Um país inteiro com vinte centavos.
 
 
 
 

23 de junho de 2013

Vinte Centavos


OS VINTE CENTAVOS MAIS CAROS DO MUNDO

Há algo acontecendo e tenho algo a dizer, ainda que me condenem (inclusive eu mesmo, no futuro).

O momento é confuso e, creio eu, ninguém sabe com certeza o que está acontecendo; de certo, mesmo, apenas que foram os vinte centavos mais caros da história.

Mas há algo acontecendo e tenho algo a dizer, como todo mundo. E dirijo-me principalmente àqueles que são críticos dessas manifestações de rua que chacoalham o país, pois já ouvi e já li de tudo, nas ruas, na imprensa, nas páginas da internet: que o movimento não tem um foco, que precisa definir um e segui-lo, que o movimento vai abrir espaço para baderna, para violência, que vai passar, que vai dar em ‘pizza’, que políticos e oportunistas vão se utilizar disso tudo para se promover, que isso pode levar a um golpe ou à instalação de uma ditadura no país... Enfim, já ouvi de tudo, como tanta gente.

E tenho algo a dizer a respeito do que está acontecendo, esperançoso como boa parte das pessoas que estão indo para as ruas.

Primeiro, aos que falam que oportunistas vão ou estão usando a população como instrumento de manobra, e que isso desvirtua ou vai desvirtuar o movimento; bem como aos que falam que o movimento é ‘de classe média’, que não é o povo que está indo pras ruas e que isso tira ou reduz a legitimidade dos protestos.

Sabe-se que as massas ignorantes, alienadas em sua maioria já que o Estado não lhes oferece uma educação adequada, não têm condição de avaliar a dimensão do que está acontecendo; e se se importam com isso é em função de seus interesses imediatos, que é o que lhes é possível perceber do mundo. Não merecem reprovação por isso, não são crias de si mesmos. São como bebês. Serão manobrados, isso me parece óbvio, e penso ser ingenuidade acreditar que tal coisa não possa ou não vá acontecer. Mas a responsabilidade pela movimentação de um bebê é da mão que balança o berço, não do bebê.

Os oportunistas, esses querem ser a mão que balança o berço.

Os intelectuais, por sua vez, atônitos, se dividem tentando entender o que está acontecendo. Aterrorizam-se em relação ao que pode vir a acontecer de ruim ou de danoso para o país, e ao mesmo tempo mostram-se céticos, descrentes, em relação ao que pode acontecer de bom. Discutem, discutem e discutem. E pairam, estáticos, acima do que está acontecendo. Apontam falhas e criticam erros, cobram rumos, foco, planos e estratégias, ao mesmo tempo em que propõem essas coisas todas... Mas pairam, estagnados, acima do que está acontecendo. Vejo neles uma certa dose de vaidade. Cobram líderes porque talvez queiram ser líderes. Propõem ações mas não agem, a menos que a ação seja a mesma que propõem; e fazendo isso, a meu ver, estão se comportando exatamente como o que tanto criticam: os manipuladores das massas. Antes dessa agitação se vangloriavam como ‘formadores de opinião’; e o que seria isso, senão mais uma forma de manipulação? Se outro que não eles fazem a mesma coisa é manipulação, mas se são eles estão apenas sendo ‘formadores de opinião’?

E nós nisso tudo? Nós, bem-intencionados, espremidos e encurralados por massas ignorantes, por oportunistas, por uma intelectualidade inerte e por um Estado que está longe de ser legítimo. E nós?

Devemos nos calar porque o movimento ‘não tem um foco definido’? Devemos nos paralisar porque há risco de violência, de golpe de Estado, de ditadura? Devemos continuar levando nossas vidas, espremidos e encurralados, porque ‘as massas não estão participando’?

Ora, estou tenso, eufórico, temeroso, inseguro, confuso, como talvez a maioria das pessoas; entre ameaças de manipulação por parte da esquerda e da direita, da intelectualidade e da ignorância, da civilização e da barbárie; entre teorias conspiratórias, fofocas, distorções e mal-entendidos; entre o presente e o futuro, entre o eu e o mundo, entre o aqui e o além.

Mas devemos voltar pra dentro de casa e esperar que as coisas aconteçam? Já não fizemos o bastante disso, além e muito além da exaustão?

Estou orgulhoso do que está acontecendo, ainda que não se possa definir a dimensão exata do que estamos presenciando; e esse orgulho me leva, também, a ficar esperançoso em relação ao que ainda pode vir a acontecer.

Falam que ‘perdemos o foco’, que precisamos ‘estabelecer um foco’. São cegos? Ou são hipócritas? Querem um foco definido com a precisão exigida pelos acadêmicos e pelos burocratas? Querem uma ‘plataforma’, quando os próprios ‘líderes’ (que não considero como tais, e nem mesmo como representantes) não nos apresentam uma? Querem um movimento de rua que se porte como um desfile ou como um estudante perante uma banca examinadora que defina o que pode ou deve ser feito? Querem um avião que corra sobre trilhos? Querem um rio que planeje seu curso antes de começar a correr para o mar? Se for isso, realmente não temos um ‘foco’. E a esses, cegos ou hipócritas, eu digo o seguinte: não estamos protestando contra isso ou aquilo, especificamente, não se trata ‘só’ dos vinte centavos ou da PEC 37 ou de outra coisa qualquer. O foco primordial é um só, o recado fundamental é um só, para toda a classe política e não para esse ou aquele partido ou ‘líder’: estamos aqui, e cansados de tanta bandalheira. Nós é que mandamos, não vocês. Vocês vivem à custa do nosso dinheiro, não somos nós que dependemos de vocês, é o contrário. Vocês devem nos servir, não nós a vocês. Chega de nos perturbar e atrapalhar com seus conchavos, sua incompetência e sua ineficiência, com o seu descaso para conosco, com a sua demagogia interesseira e inescrupulosa.

Esse é o foco.

A comparação entre os ‘vinte centavos’ e a ‘gota d’água é extremamente pertinente, e tem duplo significado.  Fez o líquido entornar, mas não de um copo, e sim de um açude inteiro; mas também movimentou todas as milhares de outras gotas d’água do açude inteiro, a ponto de transformá-lo num rio, e é isso que somos. Um rio. Estamos buscando e correndo em direção à grandiosidade do mar. Procurando, contornando, removendo, desgastando, aplainando. Milhares de gotas d’água unidas num único e espontâneo movimento. E querem que o rio corra pelo trajeto que eles, os ‘líderes’, definem? Querem que o rio corra por canos, para que não sejam perturbados ou para que possam definir seu curso? Espero, sinceramente, que não consigam fazer isso, mesmo sabendo que tal coisa provavelmente há de acontecer, já que há, dentro do próprio movimento, elementos que pensam assim. A esses, eu gostaria de dizer que deveriam conscientizar-se de que somos um rio, e que os que se dizem ‘líderes’ são somente peixes, sustentados pelo rio, vivos em função do rio, existentes graças ao rio; e que não são os peixes que definem o curso do rio.

E aos que reclamam da falta de lideranças no movimento, que o criticam por causa disso, que cobram o aparecimento de ‘líderes’, eu gostaria de dizer que, a meu ver, estão avaliando mal a situação. Somos milhares de rostos anônimos, satisfeitos e contentes por sermos milhares de rostos anônimos. O recado das ruas é este também. Estamos justamente dizendo que não queremos mais líderes, que nos cansamos de nos curvar e obedecer, que queremos ser, nós mesmos, os senhores absolutos sobre as nossas próprias vidas, que queremos mandar, que queremos que os ‘líderes’ sejam representantes e não líderes, que sejam nossos empregados e que se comportem como tal.

E para concluir, tomando por base o slogan amplamente difundido nas ruas de que “o gigante acordou”, eu diria que não é bem assim, que não acho que estamos despertando e nem querendo despertar o gigante adormecido. Estamos simplesmente querendo extirpar do berço esplêndido os cupins que o corroem.

9 de junho de 2013

Posso Ajudar?


POSSO AJUDAR?

Um sujeito se aproxima do balcão, pela bilionésima vez e depois de horas de fila, e o atendente lhe diz:

― Posso lhe ajudar?

― Isso é verdade?

 ― O quê?

― Que você vai realmente me ajudar?

― Quem falou isso?

― Você. Você me perguntou: ‘Posso lhe ajudar’?

― Ah, sim, claro.

― Claro mesmo?

― Claro o quê?

― Que você vai me ajudar!

― Eu disse isso?

― Disse.

― Então é isso.

― Isso o quê?

― Isso que você disse.

― Tá bom, olha, eu disse e você disse. Tá certo?

― Certo.

― Então você vai mesmo me ajudar?

― Se é o que você disse...

― Não, você me disse!

― Eu? Quando?

― Olha, você não está me ajudando...!

― E quem disse que eu ajudaria?

― Você.

― Quando?

― Puta que o pariu!!

― Olha, é perigoso falar palavrão num órgão público...

― Dane-se, se é público também é meu!

― Depende. Quem é você?

― Um cidadão.

― De onde?

― Daqui, porra!

― Olha, já falei que palavrão...

― Foda-se, você perguntou se podia me ajudar...!

― Perguntei, é...?

― Perguntou, cacete!

― E como posso fazer isso?

― Me ajudando...!!

― Como?

― Bom, vamos fazer o seguinte: a gente começa daqui, tá certo?

― Sim. Posso lhe ajudar?

― Pode, perdi meus documentos e...

― Dê-me uma cópia de seu RG.

― Eu perdi meus documentos...!

― Até o RG?

― É, por isso estou aqui!

― Nossa...! Que triste! Como foi isso?

― Não interessa, eu perdi meu RG e quero outro...!

― Não pode tirar outro se você já tem um.

― Mas eu não tenho um, eu perdi o meu e quero outro do mesmo, entendeu?!

― Entendi. Posso lhe ajudar?

― Ai, meu Deus...! Pode, eu perdi meu RG e quero outro do mesmo, uma segunda via, sei lá...!

― O senhor é deste estado?

― Não.

― Então não posso ajudar, só no seu estado de origem.

― Mas essa porra não é Registro Geral?!

― Olha o palavrão...

― Tá bom, tá bom, que saco...!! Meu senhor, olha aqui, preste atenção: RG não significa Registro Geral?

― Significa.

― E se é ‘Registro Geral’ por que é que eu não posso tirar outro aqui, mesmo sendo de outro estado?

― Porque é ‘geral’ mas é estadual, sabe? Esquisito, eu sempre pensei nisso... Um documento ‘geral’ que não é geral, que é estadual... Estranho, né?

― É, mas você pode me ajudar?

― Em quê?

― Ai, meu saco!!

― Ah, tá, o seu RG, né? Desculpa, eu me distraí!

― Eu vi.

― Então, se é de outro estado não posso ajudar, só mesmo indo no mesmo lugar onde o senhor tirou o anterior.

― Mas eu não posso voltar pra lá só pra isso, é muito longe.

― Aí fica difícil. Mas olha, eu não deveria fazer isso, mas vou lhe ajudar.

― Não acredito...!

― Em quê?

― Que você vai me ajudar...!

― Eu?

― Cacete...! Olha, você pode me ajudar?

― Claro.

― Que bom, era só isso que eu queria. De novo, eu perdi meu RG e...

 ― Simples. É só tirar um novo RG.

― Mas você não disse que não pode tirar outro?

― Não pode mas pode. Entende?

― Não.

― Mas é assim que a coisa funciona.

― Tá bom, então como é que eu faço?

― Pra quê?

― Pra tirar outro RG, porra!

― Palavrão...

― Pelo amor de Deus, como é que eu faço pra tirar outro RG?

― Simples, é só me dar seus documentos.

― Mas eu perdi meus documentos!!!

― Nossa, que triste! Posso ajudar?



6 de abril de 2013

Homenagem ao Paulão


 
 

 
O Paulão se foi.
 
A matéria e a energia, que ele tanto já descreveu, agora se dissipam, sabe-se lá para onde, sabe-se lá como...
Uma luz a menos no mundo. Ou não?
A lâmpada pode perecer, mas o que dizer da luz que ela irradiou? Extingue-se também? Ou continua a percorrer o espaço e o tempo, fulgurante e inspiradora? Pode a morte da lâmpada interromper o caminho da luz que ela própria emitiu incessante e alegremente ao longo de sua existência?
Creio que não.
Uma luz há de ser eterna, e ainda que se dissipe nunca desaparece por completo. Iluminou. Caminhos foram encontrados graças a essa luz, e caminhos encontrados não se perdem novamente, mesmo porque já foram trilhados. E vidas que se banharam nessa luz nunca mais hão de voltar para a escuridão. Iluminou. Doou-se. Repartiu. Resplandeceu fazendo resplandecer. Brilhou sobre um tablado, emoldurado por uma lousa. E brilhou sonora, acalentada por uma voz que não mais será ouvida.
Fará falta.
A alegria, o bom humor, a lealdade, a simpatia, a bondade, o carisma... A mocidade adolescente que a tantos encantou... E que certamente ainda encanta e ainda encantará.
Fará falta.
Era, realmente, a mocidade encarnada num corpo ao qual foi imposto envelhecer, sem consulta, sem opção, sem consentimento...
Fará falta.
Preencheu espaços, que agora se enchem de ar invisível e mudo; percorreu o tempo, que agora parou; mas verteu energia, impregnou vidas, marcou mentes e deu sentido à palavra lembrança...
Lembrança essa que estará num tablado vazio...
Numa lousa apagada...
Num pincel repousando no suporte, como uma batuta a espera de seu maestro...
E numa sinfonia que, inacabada, silenciará para sempre...
Adeus, meu amigo.