O
Fator Mãe
Eu
dormindo.
Não
sei dizer desde quando, afinal de contas dormir pressupõe inexistência de
tempo, pelo menos até o despertador avisar que há um vínculo o entre seu sono e
as horas do mundo. Só que num domingo, dia em que até os despertadores,
normalmente, estão de folga; ou seja, um dia que existe para não se fazer nada,
exceto no caso daqueles infelizes que têm algum compromisso, seja por necessidade
ou seja por algumas taras incompreensíveis que se infiltram na sociedade (taras
essas, aliás, muito bem justificadas por alguns dos tarados, algumas até com embasamento
teórico quase acadêmico: estou ficando velho e com a velhice o sono diminui, eu
sempre acordei cedo e minha mente já está programada pra isso, meus olhos
percebem a claridade do dia mesmo por detrás das pálpebras, e vai por aí
afora...).
Domingo
é um dia pra não se ter compromisso com nada, principalmente com a hora de
acordar; e isso apesar de existirem alguns infelizes (necessitados ou tarados)
que acordam antes do cérebro e sistematicamente sentem uma compulsão
incontrolável de telefonar pra você (cedo, é claro) pra perguntar o que você
pretende fazer depois do meio-dia, quando você, aí sim, já estaria
acordado. E nesses casos, eles (os tarados),
educadamente, perguntam se você já estava acordado; acrescentando, logo em
seguida, e na maior cara de pau, que já tinham te mandado um whatsapp antes (lá
pelas seis da madrugada, com certeza), mas que, como você não respondeu, resolveram
então telefonar (a impressão que dá é que a falta de resposta cria uma histeria
no sangue deles) ... E aí você fica tão sem reação que simplesmente murmura:
‘Ah, não vi’ ...! Como se a bosta do aparelho não apitasse, vibrasse ou
acendesse pra te dar um beliscão no cérebro.
Mas
voltando: eu dormindo. Domingão. O despertador hibernando tanto quanto eu, celular
estrategicamente desligado pra não ser perturbado (planejamento é tudo) e não
sou nem tarado e nem necessitado.
Dormindo.
Dormindo o sono premeditado e prazeroso dos despreocupados e preguiçosos.
Esqueci
o fator mãe.
Pálpebras
hermeticamente coladas, acordei com um barulho dentro do quarto que parecia o
vai-e-vem de uma barata procurando o histórico escolar de 1927 no sótão (sei
que sótão existe porque já vi filmes de terror). E dava pra perceber que já era
dia claro (eu estava com as pálpebras coladas, tudo bem, mas olhando pelo lado
de dentro, realmente, dá pra concluir se do lado de fora há claridade ou
escuridão: pálpebras avermelhadas, claridade; pálpebras pretas, escuridão). Enfim,
mesmo com os olhos fechados deu pra concluir que não era meia-noite. Deu pra
concluir, também, que só podia ser a minha mãe, porque não havia mais ninguém
em casa, porque uma barata não faria tanto barulho, porque não estudei em 1927
e também porque não tenho sótão em casa.
Ainda
fiquei com as pálpebras coladas, tentando me fazer de desentendido, esperando
pra ver (ou melhor, esperando pra não ver) se o vai-e-vem demoníaco
terminava para que o quarto voltasse à condição suprema e sagrada de um
ambiente de penumbra, quietude e ausência total na solidão do nada.
E
nada.
O
vai-e-vem continuava.
Resolvi,
finalmente, abrir os olhos (ou ‘descolar as pálpebras’, se você quiser uma
criatividade mais erudita) e perguntar, solenemente, grotesco como se fosse um
‘Zé Ramalho’ arrotando:
—
Que foi, mãe...?
—
Tô pegando a roupa suja pra lavar — respondeu ela, naquele tom ‘escrava
Isaura’, querendo dizer ‘se não sou eu nesta casa...!’ (e repare que as
reticências, nesse caso, imediatamente induzem a interpretar que o que ela está
realmente dizendo é: ‘Vagabundo...!)
E
aí então você, na ingenuidade do seu recém despertar, como se não soubesse que
quem quer sossego deve ficar de boca fechada (ainda mais em se tratando de
mães), pergunta bestamente:
—
Mas mãe, precisa pegar roupa suja agora? Dentro do meu quarto? (o que você quer
mesmo dizer é: ‘Cacete!, não vou precisar de roupa limpa agora!’)
E
ela, como se já tivesse premeditado tudo o que fosse falar, prontamente te
responde, de forma satanicamente provocante:
—
Preciso pegar agora porque quando
você precisar vai estar pronta na
hora em que você precisar (percebeu a ênfase, não?).
—
Mãe, se eu fosse precisar de alguma roupa limpa eu avisava, ou então colocava
no cesto de roupa suja...!
Ela
não retruca. Não ouve ou finge que não ouve. Continua fuçando, fuçando,
fuçando... Depois pára, bem no pé da sua cama, de frente pra você. Ergue a calça
que você, num gesto raramente ordeiro, colocou lá antes de dormir pra poder usar
no dia seguinte (a mesma calça que você só tirou do guarda-roupa depois do
banho de ontem, pra cair na noitada, e que pra você continuava limpa). Mas ela
levanta essa calça com as duas mãos, conseguindo sei lá como enxergar alguma
coisa na penumbra, e diz:
—
Esta calça aqui, por exemplo...
—
Que é que tem, mãe?
—
Esta calça é pra lavar?
—
Não, mãe, tá limpa, se fosse pra lavar eu tinha colocado no cesto...
—
Mas parece que tá suja...
—
Não tá, mãe, já falei, se estivesse suja eu tinha colocado no cesto...
—
Mas parece suja...
—
Não tá, mãe, tirei do guarda-roupa ontem à noite, só usei pra ir pro barzinho...
—
Então tá suja, se você já usou...!
—
Mãe, só usei essa calça por umas 3 ou 4 horas, tá limpa...!
—
Quatro horas é muito, vai saber o que você andou fazendo com essa calça.
—
Nada, mãe, não fiz nada, só sentei com ela no barzinho! E o que eu
queria mesmo era ter podido tirar essa calça!
—
Então não tá suja?
—
Não, mãe, não tá, se tivesse suja eu tinha colocado no cesto!! Coloquei aí no
pé da cama justamente pra poder usar de novo no dia seguinte!
—
O dia seguinte é hoje.
—
Tá bom, mãe, então o dia seguinte é hoje e eu coloquei aí ontem pra usar no dia
seguinte que é hoje...! Mas não tá suja, deixa aí que eu vou usar de novo no
dia seguinte de ontem que é hoje...!
—
Mas vai usar esta calça?
—
É, mãe, essa calça!! (paciência acabando e eu nem lembrava mais que
tinha pálpebras!)
—
Esta?
—
É, mãe, ESSA, essa calça aí que tá na tua mão!!
—
Mas não tá suja?
—
Não, mãe!, não tá!! Se tivesse suja eu tinha colocado no cesto...!!!
—
Mas e isso aqui, ó... (como é que enxerga na penumbra?) Parece uma mancha...
Veio
pra perto da cabeceira da cama e me colocou a maldita calça perto dos olhos
(lembrei que tinha pálpebras):
—
Isso aqui não é uma mancha?
—
Não, mãe, só parece... É o jeitão do jeans, mesmo...!
—
Será...? Parece mostarda... (como é que pode?)
Puxou
a calça de volta pra si, pra perto do nariz. Ficou farejando um segundo e meio
e depois continuou:
—
Mas e esse cheiro...?
—
Que cheiro, mãe...? (sem paciência nem esperança)
—
Esse cheiro aqui, ó... — tornou a colocar a calça na minha fuça.
—
Não tô sentindo cheiro nenhum, mãe...
—
Cheiro azedo...! Como é que você não está sentindo?
—
Mãe, não tô sentindo nada...!!! Nem cheiro nem mancha...!
—
Pra mim tá suja e fedida...
Desisto.
—
Então tá bom, mãe, tá bom...!!! Pode por pra lavar...!!!!
—
Mas se tá suja e é pra lavar, porque
você não colocou no cesto de roupa suja?!
Rendição.
Incondicional. Psicólogos de plantão que me digam como um diálogo desses pode
acontecer. Vão dizer, talvez, que ela só estava um pouco carente, queria puxar
conversa. Literalmente, ‘lavar a roupa suja’.
Domingão.
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